terça-feira, 9 de janeiro de 2024

"Negro Drama", dos Racionais MC’s, é presente nas obras de Carolina Maria de Jesus e Lima Barreto

Fernanda Silva e Sousa
Texto: Thais Morimoto*
Mesmo escritos em épocas e realidades diferentes, é possível estabelecer uma conexão entre quatro diários por meio da música “Negro Drama”, dos Racionais MC’s. Diário do Hospício e Diário Íntimo, de Lima Barreto, Quarto de Despejo: diário de uma favelada e Casa de Alvenaria, de Carolina Maria de Jesus, são livros que revelam uma experiência histórica em comum que se estende até o tempo presente. A pesquisadora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP Fernanda Silva e Sousa estudou, em sua tese de doutorado, a experiência do negro drama, nomeada pelos Racionais MC’s no álbum Nada como um dia após outro dia, de 2002. Ainda que não denominada dessa forma, essa experiência estava presente nos diários de Lima Barreto e Carolina Maria de Jesus. “A pesquisa é uma busca por aproximar o rap da literatura, nesse gesto de tentar narrar a própria experiência nos seus próprios termos, ou seja, a partir dos seus sentidos e valores, nomeando aquela realidade há tanto tempo ocultada. Essa racialização desse drama se coloca na contramão do que havia até então no Brasil, um discurso muito embasado no mito da democracia racial, na mestiçagem. Quando os Racionais lançam ‘Negro Drama’ há uma racialização radical dessa experiência dizendo: existe um drama específico vivido pela população negra”, explica. “Você tem o negro drama não apenas como a experiência vivida pelo negro – uma experiência que é fundamentalmente traumática num contexto de violência –, mas também as diferentes formas narrativas que criamos para dar conta dessa experiência e representá-la”, acrescenta Fernanda. Ao estudar o tema, a pesquisadora destaca que precisamos tomar cuidado para não cair em algumas armadilhas, por exemplo, transformar os diários de Lima Barreto e de Carolina Maria de Jesus em narrativas de superação. “Quando escutamos ‘Negro Drama’ dos Racionais, estamos falando de um sujeito que, ainda que tenha ascendido socialmente, continua enfrentando uma série de desafios do ponto de vista social e material, sendo visto como não humano, lidando com uma série de dilemas existenciais”. Com essa visão, Fernanda compreende que o gesto de escrever um diário não se configura como uma superação dessa experiência; trata-se mais da criação de um espaço de reflexão e elaboração dessa mesma experiência. Outro aspecto estudado no doutorado foi a escravidão e as relações com os livros e os Racionais MC’s. De acordo com a pesquisadora, ao analisar a letra de “Negro Drama”, existe a narrativa de um sujeito que pensa nas sequelas da escravidão e entende que essa parte da história não está apenas no passado. “Acho que a maior contribuição do meu trabalho pode ser a incorporação do arquivo da escravidão para pensar a formação da literatura brasileira, principalmente como arcabouço possível para olhar as histórias de autores e autoras negras para além daquilo que está na superfície dos textos, fazendo o que o pesquisador Edimilson de Almeida Pereira chama de ‘arqueologia da memória escrava”, afirma. Para analisar os diários, Fernanda optou por realizar uma crítica literária especulativa em relação aos textos, inspirando-se na ideia de “fabulação crítica” da historiadora Saidiya Hartman, que permite olhar para o texto e imaginar ações e pensamentos em cima do que não está presente textualmente, mas que pode ser pensado com base num repertório teórico e metodológico que assume a centralidade da experiência negra na modernidade. A tese foi defendida no âmbito do programa em Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH, sob orientação do professor Marcos Piason Natali. Lima Barreto (1881-1922) escreveu Diário do Hospício em sua segunda internação no Hospital Nacional dos Alienados, entre o fim de 1919 e o início de 1920, enquanto Diário Íntimo foi organizado postumamente por Francisco de Assis Barbosa e reúne anotações que vão de 1903 a 1921. Carolina Maria de Jesus (1914 – 1977) publicou Quarto de Despejo: diário de uma favelada em 1960, e Casa de Alvenaria em 1961, após conseguir sair da realidade da favela do Canindé.

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